‘Na pandemia, não existe o ideal, mas existe o possível’

A psicóloga Denise Pará Diniz fala sobre a necessidade de buscar sentido em meio à crise, e como momentos de estresse podem despertar o melhor e o pior de cada um

Para psicóloga, tentar negar a nova realidade imposta pela pandemia pode ser fator de estresse significativo | Foto: rawpixel

Não é possível evitar o sofrimento, mas podemos escolher como lidar com ele. É o que propôs o psiquiatra austríaco Viktor Frankl, sobrevivente do holocausto nazista, em seu livro “Em busca de sentido: Um psicólogo no campo de concentração”, publicado em 1946.

Para a psicóloga comportamental Denise Pará Diniz, coordenadora do Setor de Gerenciamento de Estresse e Qualidade de Vida da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), as reflexões de Frankl se prestam ao difícil período da quarentena vivida atualmente. Em entrevista ao Nexo, realizada por telefone em 20 de maio de 2020, Diniz afirma que o enfrentamento dessa fase passa por “viver de uma maneira que tenha significado”.

Na visão da psicóloga, a situação de estresse trazida pelo evento da pandemia vem se somar a diversos outros componentes estressantes de nossos cotidianos. Ela afirma que é preciso estar atento ao acúmulo desses fatores, que trazem o risco de um adoecimento mais grave a longo prazo, física e mentalmente. Estamos vivendo “uma combinação de incerteza e perigo”, afirmou.

Viver no que ele chama de “piloto automático”, negando a realidade e as mudanças trazidas pela pandemia pode, segundo ela, ser fator de estresse significativo. É também jogar fora a chance de aprender o que a crise tem para ensinar. “Coisas como valores comunitários de cooperação e colaboração, que estão priorizados em detrimento de valores como prestígio, popularidade e poder”, disse.

De que forma a pandemia pode impactar o comportamento humano?

Denise Diniz - As coisas mudaram da noite para o dia e deixaram aquele gosto de “nossa, que foi mesmo que eu deixei para trás, quem eu esqueci de abraçar, o que eu fiz com a minhas economias e aquele projeto que eu tinha?”. A pandemia foi mudando o que a gente é, assim como nossos relacionamentos com o mundo e com nós mesmos.

Do ponto de vista científico, cognitivo-comportamental, um grande evento nos desperta. Motiva pensamentos que levam a emoções, que resultam em ações no comportamento. Segundo a abordagem atual, o pensamento vem quase junto com a emoção, só um pouquinho antes. Por exemplo, insônia. Um pensamento leva a outro e você não consegue dormir. Ou você está com uma gripe e resolve não ir ao teatro porque vai se contaminar. Então tem uma emoção, que é o medo, que resultou no comportamento final de você não ir.

Ou senão [o pensamento de] “eu vou morrer, algo está me ameaçando, o que eu fiz para as pessoas e para mim mesmo?”. Isso pode levar você a ser mais altruísta, mais solidário com as pessoas a sua volta ou na comunidade. Ou não. Você pode falar “comigo não pode estar acontecendo isso”.

O que se destaca? O comportamento egoísta ou o altruísmo?

Denise Diniz - O isolamento limita a gente. Uns lidam com mais solidariedade, outros com mais egoísmo, talvez por serem pessoas mais egocêntricas. De qualquer forma, o sentimento geral primordial é de fragilidade, porque ninguém está isento, todo mundo pode pegar [a doença], não importa qual seja sua posição na vida, sua popularidade, todos os indivíduos passaram a viver uma situação de desamparo e uma sensação de dependência.

Criou-se uma grande incerteza. A gente não sabe direito quais serão as consequências, se você vai sobreviver, como ficam as finanças, o trabalho. É uma combinação de incerteza com perigo que te leva a um processo de estresse. O estresse é quando você vive uma grande mudança e tem que fazer um esforço de adaptação. Esse esforço faz todo o seu organismo reagir. No aspecto físico, psíquico e social é o organismo fazendo de tudo para se reequilibrar. Com isso, vai aparecendo a dinâmica de cada um, os valores que cada um já tinha.

Todos já vínhamos de uma forma mais egocêntrica de funcionar. Agora, a gente modificou nosso meio de vida, hábitos, e tem gente que não se conforma com isso, não consegue mudar. Ser egocêntrico é uma forma de reagir a uma situação em que tivemos que aprender a nos adaptar para tentar sobreviver. Só que algumas pessoas não conseguem aprender nem com grandes impactos.

Situações extremas têm capacidade de modificar nosso comportamento?

Denise Diniz - Bom, tem gente que liga o piloto automático e vai funcionando da mesma forma, indo de contramão ao que a ciência está prescrevendo, ao que as vivências mundiais estão mostrando que é o melhor caminho para sair da crise. São pessoas que ficam mais fixadas no seu sistema de valores e isso por si só já é outro estresse para a pessoa, pois acaba sendo uma abordagem onde nada faz sentido.

Tem gente que não quer e não consegue fazer análise do que está acontecendo. Funcionava de um jeito e continua funcionando daquele jeito, seguindo em busca de atender suas necessidades e perdendo a chance de aprender o que a crise tem para ensinar: coisas como valores comunitários de cooperação e colaboração, que estão priorizados em detrimento de valores como prestígio, popularidade e poder. Nossos valores e nossos ideais podem ser transformados. Você precisa estender a mão. O poder da humanidade se tornou necessário.

O que a psicologia diz sobre quem abdica de tudo, muitas vezes arriscando a própria vida, para ajudar os outros?

Denise Diniz - Tenho pesquisado a saúde mental de profissionais de pronto-socorro de covid-19. A pessoa quer ajudar mesmo correndo risco de vida. Tem também muitos psicólogos se dedicando a ajudar profissionais da área de saúde. Tem voluntários de hospitais, que mostram uma dedicação ímpar. Gente levando cestas básicas em comunidades. Ou vizinhos que se oferecem para ajudar o vizinho de mais idade ou os pais. São pessoas altruístas que que não estão esperando nada em troca. Não são atos de heroísmo, mas de amor ou de conscientização social, de pensar “eu tenho menos idade, não vou querer que meus pais se exponham então eu vou fazer isso por eles”. Pesquisas mostram que o ato de se voluntariar, de fazer algo para alguém, é uma maneira de combater o estresse. Colaborar com outro te traz um grande bem-estar.

É possível especular o que essa situação pode fazer a longo prazo com as pessoas?

Denise Diniz - Quando você passa por um evento estressor, ele tem impactos neuro-psico-fisiológicos. Com algo da dimensão da pandemia, acompanhada de eventos estressores concomitantes como problemas de dinheiro, de relacionamento, você pode ter problemas a curto e longo prazos.

Entre os de curto prazo estão problemas físicos, por exemplo, uma dor de barriga, mão gelada, pressão alta, tristeza ou ansiedade. Quando se começa terapia ou medicação, nessas situações, é para evitar que se desenvolva os fatores estressores a longo prazo. Se não for tratado, e for acumulando, pode deixar a pessoa doente, exausta ou até matar. O que era uma tristeza ou uma ansiedade evolui para um quadro de depressão importante. Outro exemplo: uma situação de pressão alta que leva a um quadro de hipertensão.

O que quero dizer é que o estresse envolve a pessoa como um todo, de uma forma dinâmica e integrada. Não é possível guardar o estresse na gaveta. É importante falar disso no sentido de pensar em como se preparar para o futuro, gerenciar o estresse para não adoecer lá na frente. Vamos correr atrás de não adoecer social e emocionalmente.

A pandemia proporciona uma oportunidade de refletir sobre o sentido da vida?

Denise Diniz - Existe um livro chamado “A Busca do Sentido da Vida”, do Viktor Frankl, em que ele afirma que não podemos evitar o sofrimento, mas a gente pode escolher como a gente vai lidar com ele. Frankl ficou em um campo de concentração nazista. Lá, ele procurou ter um motivo para sobreviver, ter um objetivo da vida que fizesse sentido para ele, que fosse importante.

Então uma coisa que é importante agora é descobrir exatamente como se readaptar para viver de uma maneira que tenha significado. Que não seja só o dever de ficar em casa, usar máscara, de se organizar às vezes em um minúsculo espaço físico, de ter uma super-convivência com a família. Correr atrás do que faça sentido, do que te motive, do que faça você ficar bem. Em tempos de pandemia, não existe o ideal, mas existe o possível.

Por: Camilo Rocha | Fonte: NEXO